quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Artigo sobre experiência religiosa

DE CATÓLICO A CANDOMBLECISTA: Relatos experienciais de um religioso*

Marcel Franco da Silva**

Considerações Iniciais

Por que e para quê existimos? É na tentativa de dar conta dessa questão que o ser humano é motivado a procurar uma noção de existência, um acabamento axiológico para sustentação dos seus valores individuais. Essa inquietante pergunta jamais saciada, invariavelmente recai sobre o seio das religiões, pois toda experiência religiosa visa dar significados aos fatos que ocorrem em nossas vidas e, direta ou indiretamente, o homem encontra-se inscrito no espaço do Transcendente.

Por essa razão, tenho tentado compreender minha vida para além dos limites da realidade concreta, adentrando na dimensão do sagrado, buscando sentidos que me mostrem que “a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais”, como diria Paulinho da Viola, e que o sonho, os projetos de vida, são coisas que desejamos na realidade concreta, mas que, primeiramente, atravessam uma realidade transcendente buscando concretude, o que eu chamo de realização de uma graça por meio do divino.

Minha experiência enquanto homo religiosus começa por volta de mil novecentos e noventa e uns... Não sei precisar o ano exato em que eu cogitava em me tornar um sacerdote católico, mas lembro bem que tinha esse desejo quando criança. Eu me deslumbrava com aquelas figuras cheia de panos no corpo, cruzes enormes, em cima dum altar, falando com propriedade sobre um homem famoso nascido há mais de dois mil anos no Oriente.

Lembro-me de uma vez, na casa do meu avô paterno, provavelmente numa ocasião festiva, que me perguntavam sobre o que queria ser quando crescesse. Para satisfazer os anseios de curiosos, respondi, ambiciosamente, que eu queria ser Papa. Obviamente que todos riram, mas entendiam que no universo daquela criança encantada ia se definindo um projeto: a vida sacerdotal.

Ainda menino, eu ensaiava, ou melhor, imitava as ações litúrgicas dos padres. Frequentava a missa e prestava bem atenção no que fazia o presbítero e levava um legionário (esses roteiros de leituras, cantos e orações da missa) para casa. Trancava-me no quarto, montava uma mesa, colocava uma cruz de caibro na parede, bolachas redondas e suco de uva sobre um pseudoaltar. Para o ritual ser completo, punha um lençol e uma estola de papel higiênico sobre o corpo e na cabeça ia um travesseiro dúctil de espuma, para que parecesse a mitra do Papa. O público que me  assistia? Ora, era uma cadela de estima nossa, o problema é que ela dormia a “missa” inteira, mas acordava e balançava o rabo sempre na hora da “comunhão”.

Passado esse período pueril e hilário, cheguei aos quinze anos amadurecendo a ideia de ser padre. Daí, comecei a seguir o que chamam de vocação. Aos dezoito, eu já era crismado, engajado em movimento da juventude católica, participava de grupo de coroinhas e frequentava encontros vocacionais no seminário de formação sacerdotal. Agora, o menino que se vestia de lençol para rezar “missa” no quarto, tinha crescido e ser tornado cerimonial e coordenador dos coroinhas na mais famosa igreja de Belém do Pará, a Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré. A brincadeira de querer ser padre agora era levada a sério.

Continuei meu caminho rumo ao sacerdócio. Procurei por várias congregações, mas numa parei e “me apaixonei de cara”, como dizem os jovens. A Congregação dos Padres Barnabitas foi a instituição que realmente tinha me fascinado. Fui tomado pelo carisma, pela missão, pela história, enfim, pelo exemplo de vida que deixara a nós o médico e fundador desta ordem, Santo Antonio Maria Zaccaria.

Frequentei muitos encontros vocacionais no Seminário dos Barnabitas, na iminência de um dia deixar a minha casa e me tornar um seminarista desta Ordem que tanto amava. Num dia crucial, na última reunião vocacional do ano, o reitor do seminário chamou para a sua sala um por um dos vocacionados que ali estavam, para comunicar quem havia de ficar ou deixar o seminário.

O reitor me chamou para o gabinete dele, foi breve em palavras, curto e grosso. Disse-me ele que eu estava dispensado do Seminário dos Barnabitas, que podia procurar outras ordens religiosas e que, enquanto ele estivesse na administração daquela casa, eu jamais poderia ingressar ali. Tirano, prepotente, inflexível se mostrava a mim aquele reitorzinho, que não me respondeu o porquê da minha dispensa, ironizando até a minha vocação.

Tão-logo, retirei-me de lá. Com a mão na bagagem e a bagagem na mão, peguei a estrada de volta para casa. O senhor pensa, aquele foi o dia mais negro da minha vida, meu coração estava assim todo esmigalhado. A saída do seminário era como uma marcha fúnebre para o enterro dos meus sonhos, em cada passo que eu dava caia um pouco a minha vida. Eu não sabia o que fazer, estava emocionalmente desequilibrado, de tal modo que   esse episódio propiciou o desenvolvimento de uma doença em mim e que anos mais tarde foi diagnosticada pelo meu psiquiatra como transtorno bipolar. Eu pensava no que eu dizer às pessoas que acreditaram na minha vocação, no que eu iria fazer dali em diante, nossa! Pensei até em me jogar na frente dum caminhão na BR, mas pensei na tristeza de minha mãe se fizesse isso e desisti do suicídio. Confesso que briguei com Deus...

Mas eu fui à luta, repensei minha vida e resolvi procurar outro caminho, mas sem esquecer que, uma vez que se experimenta a vida religiosa,  torna-se impossível se libertar dela. Há muito deixei de ir às missas, de crer no que eu fazia antes, silenciei minhas vontades antigas e saí em busca de um novo sentido para minha existência.

Quando saí do seminário, comecei a fazer juízo de certas moralidades e preceitos católicos cristãos que, a meu ver, não cabiam na minha mentalidade de forma cômoda diante do volume de conhecimentos que fui abstraindo de outras religiões e formas de religiosidade. Foi aí, então, que começava um novo processo de ressignificação da minha vida, por meio da reelaboração da minha concepção religiosa.

Enquanto eu passava pelo meu “desencantamento do mundo”, como diria o sociólogo Weber, fui buscando uma forma de religiosidade que me mostrasse um Ser Supremo que mais correspondesse as minhas necessidades de compreensão e interpretação da vida: eu precisava de “Deus comigo” na realidade concreta, porque eu sempre entendi que a alegoria de Deus no céu não existe, sempre tive Deus comigo numa relação paritária, mesmo. Eu queria uma religião que me mostrasse esse caráter anímico do divino, que mostrasse a alma de Deus (ou Deusa?) nos Cosmos, na natureza, nos fenômenos naturais, nos seres viventes. Nesse tempo que estive observando e avaliando minha religiosidade, entendi que as respostas que eu procurava, sobre as coisas da vida, sobre o porquê de eu não ter sido padre, repousavam no silêncio sagrado que estava do meu lado e eu comecei a escutá-lo e a dar mais valor para aquele silêncio.

E, em silêncio, vendo e ouvindo, saí numa peregrinação pelas religiões disponíveis no meu espaço cotidiano, visando encontrar aquela que fosse condizente com a noção de animismo que eu tinha elaborado a partir de minha experiência empírica e científica. Participei de Igrejas Protestantes Pentecostais, até gostei da forma de vivência delas com o transcendente, mas para mim, assim como no catolicismo, o sagrado vinha para perto, mas logo era posto na condição de Deus-distante.

Era início do século XXI e no meu espaço de convivência muito se falava sobre religiões afro-brasileiras. Eu tinha curiosidade em conhecê-las, mas ainda sofria os resquícios do cristianismo que me ensinaram a satanizar, negar esses cultos, e fora que minha tradição familiar católica expunha preconceito contra os cultos africanos, dizendo que isso era ilusionismo, charlatanismo, coisa do diabo.

Certo dia, meu cunhado me falou que se “tratava” num Pai-de-santo e me perguntou se eu tinha curiosidade de conhecê-lo, se eu queria ir num festejo no terreiro dele. Não pensei duas vezes, aceitei de súbito, mas fui escondido com medo de sofrer represália da minha família. Lembro-me bem que era festa do Caboclo José Tupinambá, a casa estava lotada, tinha muitas imagens de entidades que até então eram estranhas para mim, os sacerdotes estavam paramentados com roupas pomposas, coloridas, colares no pescoço; o lugar estava tomado pelo barulho dos tambores, dos cânticos (alguns numa língua que eu não conhecia) e o povo dançava e rodava no centro do salão. Confesso que tive medo, mas não me deixei intimidar e fiquei assistindo o ritual.

Num dado momento chegou o “dono-da-casa”, o Cabloco José Tupinambá. O pai de santo estava em transe, fumando e bebendo muito. Naquele momento ele estava com o espírito desse índio que tinha forças sobrenaturais. De longe eu fiquei observando a entidade e fiquei imóvel, parecia que alguma coisa me prendia as pernas e um frio me subia na espinha dorsal. Foi uma sensação que eu nunca tinha sentido em toda minha vida. O espírito do José Tupinambá ficou um tempo sobre o Pai-de-santo e foi embora. O povo logo chamava outra entidade, a cabocla Herondina. Veio então outro espírito sobre o corpo do sacerdote, era uma entidade muito simpática e cantava muito. Ela saiu cumprimentando as pessoas e me encontrou num abraço tão forte, mas tão forte que eu desfaleci dos sentidos e senti que algo muito maior que eu me tomava nessa hora. Eu recebia naquele momento o espírito do Seu José Tupinambá, segundo informantes do terreiro.

Foi uma experiência fantástica! Lembro de ter recobrado o juízo dentro do salão e estava leve como uma pluma, naquele momento eu tive a sensação de ter sido tocado por Deus de uma forma diferente daquela que eu sentia na igreja católica; naquele momento Deus havia me tocado e continuava do meu lado, eu sentia sua presença, como sinto até hoje.

Daí, então, eu descobria uma religiosidade que realmente dizia ao meu desejo de viver e ter sempre o sagrado comigo. Procurei conhecer o fundamento religioso daquele culto e nele fui iniciado como filho-de-santo por volta de 2005. Começava, assim, o meu processo de reencantamento do mundo a partir da minha adesão ao Tambor de Mina. Mas não parei por aí, como religioso e estudioso dos cultos afros, fui conhecer em outros segmentos afins, até que um dia fui levado a visitar um terreiro de Candomblé de Angola, que era algo um tanto quanto diferente da Mina e que me fascinou a primeira vista pelos tantos mistérios que apresentava e por mostrar a presença divina nas coisas naturais (numa pedra, numa planta, numa folha etc.), enquanto que a Mina ainda estava muito ligada ao culto de imagens.

Em 2008, eu me engajei no Candomblé de Angola, no Inzó Lua Branca, do Tatetu Ângelo Imbiriba, o Falode. Mas, por ser conhecedor dos fundamentos do candomblé, comecei a questionar o orixá que o Pai-de-Santo dizia que era chefe da minha cabeça e, depois de um ano de convivência, deixei a casa do meu Zelador com medo de fazer o “santo” errado. No ano seguinte (em 2010), meu ex-Pai-de-santo veio a óbito e deixei essas questões de santo por resolver, dando prioridade a minha formação profissional.

Agora, como mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, tenho buscado compreender este sistema simbólico e almejo, doravante, aprofundar científico-academicamente a experiência hermenêutica que já experimentei e experimento na vivência do universo religioso dos Tambores de Mina e do candomblé no Estado do Pará. Minha pesquisa é voltada para a compreensão do saber das águas nos terreiros de Mina e espero, com isso, contribuir, para os estudos sobre o fenômeno religioso na Amazônia, bem como solidificar as bases dessa pesquisa na Universidade do Estado do Pará.

Algumas questões éticas vivenciadas no contexto das religiões de matriz africana na Amazônia

Assim como as doutrinas religiosas tradicionais (judaicas, cristãs, islâmicas), as religiões de matriz africana na Amazônia se estruturam em torno de um conjunto de normas, o qual é transmitido por meio da oralidade e deve ser resguardado por seus adeptos; mas também há de se considerar que cada casa de santo se fundamenta a partir de suas próprias normas, podendo, com isso, acatar, reelaborar ou negar àquelas que são mais comuns nos Terreiros. Todavia quero destacar aqui as prescrições que geralmente estão presentes quer seja na Mina, quer seja no Candomblé de Angola.

Enquanto filho-de-santo, tenho observado certos preceitos na constituição dos rituais da Mina. Nos três dias de carnaval e durante a Semana Santa, é proibido tocar tambor, ou melhor, não se podem fazer festejos públicos nos terreiros de Mina, porque, como diria Anaíza Vergolino,

para muitos terreiros de Belém, especialmente os de Mina-Nagô, a sequência de tempo Carnaval/Quaresma representa a passagem de um chamado “período de euforia” (Tempo do Carnaval) para um “período de meditação” (Tempo da Semana Santa). Esse período de ruptura é marcado por muitas interdições rituais, algumas das quais recaem principalmente sobre o calendário. (HENRY, 1987, p. 60).

E, ainda tratando das proibições litúrgicas da Mina-Nagô no tempo da Semana Santa, eu notei a quebra de um tabu alimentar durante na Quinta-feira Santa, conhecida pelos católicos, como Quinta-feira Santa de lava-pés. Nos cultos de Mina é severamente proibido comer caranguejo, porque, segundo a lenda yorubana, o orixá Obaluaiê (semi-deus africano que representa a força da terra e do sol) teria sido devorado por um caranguejo que quase mata o orixá.

Mas na quinta-feira santa, a maioria dos terreiros de Mina oferece um almoço farto aos filhos e pais de santo: é servida uma feijoada de feijão preto, acompanhada por caranguejos cozidos. Todos aqueles que participam desse almoço devem comer caranguejo à vontade, mas com o sentimento de raiva, aplicando muita surra no animal cozido, batendo nele com força. Isso é feito porque nesse dia, em especial, o ato de comer o caranguejo representa o enfrentamento da morte, arriscando a própria vida, já que ele é um animal que anda para trás e que quase mata um dos maiores orixás da religião africana, o Senhor Omolú. Então, comer caranguejo na quinta santa é uma educação da morte, com a morte e para a morte. (IDEM, p. 63-64). Passado esse período, o tabu do caranguejo para os “mineiros” é restabelecido e mantido até a chegada da quinta-feira santa do ano seguinte.

Outro preceito pertinente não só na Mina, mas também nas casas de Candomblé, é que não se podem manter relações sexuais e nem contato com o mundo externo (fora da casa de santo) durante os chamados períodos de recolhimento. Esses períodos de confinamento do médium na casa de santo correspondem ao preparo do indivíduo para execução de atividades religiosas diversas. Por exemplo, uma pessoa que quer ser filho/a de santo na Mina, fica recolhida durante três dias para “fazer o Anjo da Guarda”, ou seja, o pai-de-santo irá assentar a entidade espiritual do aspirante, ensinar os fundamentos básicos do terreiro e começar a desenvolvê-lo para o recebimento dos encantados, que foram pessoas que viveram na terra, mas não passaram pela experiência da morte e foram, assim, levados para o mundo da encantaria.

No candomblé de Angola também tive experiências com novos preceitos, os quais se diferenciavam com aqueles aprendidos no contexto da Mina-Nagô. Seja em qualquer circunstância (ritualística ou não), o filho-de-santo sob hipótese alguma poderá sentar em cadeira ou lugares altos que marquem uma posição elevada ou similar ao assento do pai-de-santo. O pai-de-santo é figura máxima do ritual de Candomblé e as práticas dos filhos-de-santo devem voltar-se como um ato de submissão e respeito ao sacerdote da Casa. Geralmente, eu chegava ao terreiro de meu pai e procurava logo uma poti (um banquinho de 30 a 40 centímetros) ou uma esteira para me assentar, mostrando, com isso, obediência aos preceitos da casa.

Também no candomblé existem tabus alimentares que são seguidos a risca. Eu, por exemplo, como filho de Oxalá velho não devo comer comidas com sal, dendê, pimenta. Tudo isso tem uma fundamentação lendária. Contam que Oxalá viajou até o Reino do Oyó, para visitar seu filho, o Rei Xangô. Durante a peregrinação do velho Oxalá, o seu irmão invejoso, o orixá Exú, perseguiu o Senhor do Pano Branco, tentando fazer com que ele não alcançasse o seu objetivo. Exú por três vezes tentou e enganou Oxalá. Exú se passava por mendigo e pedia ajuda para o velho ajudá-lo a carregar o fardo que trazia nas costas. Quando Oxalá se abaixava para juntar o saco exu jogava algo para macular e zombar do Orixá-maior. Oxalá deixou-se enganar por três vezes e Exú sujou as roupas do seu irmão com um desses elementos pro vez: sal, dendê e carvão. Quanto à proibição da pimenta, ela é estabelecida porque é um alimento de Exú, o que representa uma afronta aos filhos de Oxalá. As roupas vermelhas e pretas também são coisas a serem evitadas pelos que trazem esse orixá, pois são cores propriamente de Exú. Se formos observar cada fundamento dos orixás do panteão africano, veremos que cada um traz um bojo de prescrições a serem seguidos pelos seus respectivos filhos-de-santo, para que se mantenha respeito à entidade sagrada que rege a vida de cada um e para que cada um não venha a desenvolver problemas no plano físico e/ou espiritual ao burlar um interdito ligado ao arquétipo do seu orixá.

Tratando ainda sobre a alimentação em relação com o sagrado nos cultos afro-brasileiros, observei a obrigatoriedade de imolar certos animais, que são práticas sacrificais que me remetem ao Ensaio sobre a dádiva, de Marcel Mauss. Nas obrigações ritualísticas do candomblé geralmente se abate certos tipos de animais para um orixá. Meu caso, por exemplo, se eu for raspar para o meu orixá, deverei ficar enclausurado por 21 diais no Inzó (casa de santo), fazer um ebó (espécie de limpeza), arriar comidas do meu orixá, e, principalmente, imolar animais de cor branca como oferenda ao santo que rege a minha cabeça. Mas, em outras circunstâncias, como pedido de uma graça, restabelecimento de saúde etc, pode-se recorrer ao orixá pedindo-lhe o que se deseja, mas para isso deve ser estabelecida uma troca entre o profano e o sagrado e para mostrar a minha aliança com a divindade que me assiste. Pois, como diria Marcel Mauss, “recusar-se a dar, deixar de convidar ou recusar-se a receber equivale a declarar guerra, é recusar a aliança e a comunhão” (MAUSS, 1974).

Retomando a relação filho e pai-de-santo, quero destacar algumas que considero importante, vigente na própria estrutura do ritual de Angola. Durante as festas de orixás, o ritual inicia a partir de cânticos em Bantu, os quais exaltam e chamam os orixás para incorporação nos filhos e pais-de-santo. De acordo com sistema ritual nunca se canta do maior para o menor orixá, a ordem crescente do panteão africano é entoada na cerimônia, ou seja, primeiro se saúda o Exú, depois Ogum, Oxóssi, os outros orixás masculinos e femininos, até chegar à reverência a Oxalá, que tido como o “Pai-Maior” e o mais importantes de todos. Assim como na liturgia dos cânticos, observa-se a mesma estrutura de ordem crescente nas ações litúrgicas dos que dançam no salão. Primeiro, entram de cabeça abaixada e com o corpo encurvado os filhos-de-santo, depois os pais e mãe-de-santo, sendo que dentre estes o último que entra é o dono (ou a dona) da Casa.

Interessantemente que durante meu vivenciamento no Candomblé, observei que os valores da sociedade fora dos limites do terreiro não têm importância alguma para os valores e para a estruturação dos terreiros de Angola. Ou seja, quero dizer que eu entrei no candomblé com uma formação diferente do meu Pai-de-santo; aquela altura eu estava quase me graduando na Universidade e meu pai devia ter no mínimo concluído um ensino médio e isso, sob hipótese alguma me deu privilégios de gozar um status dentro candomblé, muito pelo contrário, ficou bem estabelecida a minha posição de iniciado e que eu deveria me comportar como tal, numa atitude de submissão e respeito com aquele que tinha um outro conhecimento religioso que eu não tinha e esse conhecimento, e mais os anos de iniciação do meu Pai de santo, que faziam toda a diferença nas relações internas da nossa casa de santo. Dizia meu Pai-de-santo que a pessoa poderia até ser doutora, ter muito poder aquisitivo, ser famosa, mas que nada disso importaria para nossa religião e que ela deveria sentar na poti, na esteira e obedecer as normas do terreiro se quisesse “fazer o santo”.

Algumas considerações

O trânsito de uma religião para outra, por mais semelhantes que elas se pareçam, é sempre conflituoso e, por vezes, isso demora muito para estabelecer-se de forma harmônica. O contraste entre valores das religiões é um constante debate na mentalidade do indivíduo que vem de uma tradição religiosa, mas, estando insatisfeito com esta, tenta negá-la e procura uma religiosidade que corresponda ao conjunto de valores reelaborados a partir do desencantamento religioso que teve com a instituição anterior.

Isso me faz retomar sobre a experiência religiosa que tive no catolicismo, porque muitas vezes questionei no âmbito do terreiro, quer seja da Mina, que seja do Angola, a ausência de uma espiritualidade, de uma prática de oração introspectiva, que ficassem fixadas no ritual do terreiro; pensava que as orações rotineiras poderiam assegurar o lugar do sagrado como sagrado, mas, infelizmente, esse caráter normativo cristão não cabia nesse novo espaço que ora era profano, ora era sagrado e ficava difícil, então, o estabelecimento das ideias que eu tinha, baseada nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. Então a tarefa agora era compreender o valor do outro, desse novo outro que me convidava a comungar do seu universo religioso.

A partir dos conceitos sobre polifonia do meu “pai” Bakhtin (2006), passei a entender que eu estava inscrito num conjunto de culturas, ou seja, notei que as ideias de “junção, fusão e mistura” (FERRETTI, 1995, p. 91) são sentidos mais comuns observáveis no contexto sincrético das religiões em Belém do Pará, muito embora eu tenha lutado para aceitar este fenômeno, mas a verdade é ele “existe em todas as religiões, (...), quer gostemos ou não.” (IDEM).

Durante minha passagem da Igreja Católica até o culto Afro-brasileiro, notei que algo mais comum ficou de resistência, o monoteísmo, a crença de um único Ser Supremo. Se para os católicos ele é chamado de Deus, para os mineiros ele é apresentado como Olorum e para os angoleiros ele tem o nome de Nzambi Npongu. A diferença é que para as religiões de matriz africanas quem criou o mundo foram as forças da natureza, que são os orixás criados pelo supremo Olurum ou Zambi, como queiram; ao passo que para os católicos um único ser teria sido responsável pela criação de tudo. O que vejo nessas religiões que experimentei é uma abordagem diferenciada sobre um mesmo fenômeno religioso (o monoteísmo), como a noção/função do Ser Supremo que apresentei anteriormente.

Acredito que os sentidos da minha pertença religiosa não estão somente no espaço interno dela, mas nos espaços das outras religiões que coexistem com ela. Quando observo os sistemas de trocas e de valores entre as religiões, eu me sinto conduzido à busca de um elemento primordial que elas têm em comum, embora cada uma compreenda a partir de suas próprias doutrinas filosóficas.

Bibliografia

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FERRETTI, Sérgio. Repensando o sincretismo: estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo: EDUSP/FAPEMA, 1995.

HENRY, Anaíza Vergolino. A Semana Santa nos Terreiros: um estudo do sincretismo religioso em Belém do Pará. In: Revista “Religião e Sociedade”, 14/3, 1987.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. São Paulo: EPU, 1974.

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* Artigo apresentado sob forma de palestra aos graduandos de Ciências da Religião – PAFOR/UEPA, no dia 14/07/2011, na Sala de Conferências da referida IES.
** Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da Universidade do Estado do Pará. Agosto/2011.   

3 comentários:

  1. Já ouvi dizerem: "religião não se discute", diante desta afirmação demasiada errônea, reflito no fundamental papel que nós, enquanto mestrandos da Ciências das Religiões ocupamos na sociedade, justamente, para evidenciar que religião é nosso objeto de análise,e, portanto, discutimos sim, as diversas interpretações dadas a este objeto e suas características essenciais presentes na dimensão da vida humana. Algo tão essencial ao homem, nao pode ser, de forma alguma, lançado fora. Estamos, pois, aqui para revalorizarmos a cientificidade do estudo das religiões. (D.Meira).

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  3. Eu agradeço, Danjone, pelo seu comentário, suas palavras que vieram engrandecer este trabalho. Espero, no entanto, que este relato possa também suscitar outros, para criarmos, assim, uma discussão sobre o fenômeno religioso em suas múltiplas manifestações, já que é isso que nós nos propomos a fazer neste Mestrado. Aguardo o seu relato também, viu!? (risos).
    Com os melhores cumprimentos
    do seu colega de curso
    Marcel Franco

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