sábado, 28 de maio de 2011

Artigo sobre religião de matiz africana na Amazônia

AS DUAS AFRICANIDADES ESTABELECIDAS NO PARÁ*


Taissa Tavernard de Luca**

Resumo: Falar em campo religioso no estado do Pará é referir-se, indubitavelmente, a uma grande variedade de religiões de diversas matrizes, cristãs e não cristãs. Este artigo tem por finalidade informar o leitor sobre as principais religiões de matriz africana que se estabeleceram em Belém do Pará - região norte do País. São elas: a Mina, advinda do estado do Maranhão em meio a economia gomífera no final do século XIX; e o Candomblé, que entrou no Pará a partir da importação de sacerdotes baianos na segunda metade do século XX. Destacamos o percurso histórico das referidas religiões, e suas peculiaridades litúrgicas considerando, minimamente sua diversidade interna, partindo do princípio de que não se pode pensar em dois blocos religiosos monolíticos.

Palavra-Chave: Religião Afro-Brasileira, Candomblé, Mina, História, Ritual

Abstract: To talk about religious field in state of Pará is to refer, out of doubt, to a great variety of religions of several headquarter, Cristian or Non-Chistians. This article has the finality of informing the reader about the main religions from African matrix which have established in Belém of Pará - north of Brazil. They are Mina, coming from state of Maranhão in the gomifera’s economy in the end of 19th century, and candomblé that came into Pará with the importation of priests of Bahia in the second half of 20th century. We point out the historical way of these religions and their liturgical peculiarities considering at least their inner diversity, considering that one cannot think about two monolithic religions blocks.

Key-words: Afro-Brasilian’ s Religion, Mina, Candomblé, History, Rite.
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Introdução

Durante muitos anos a Amazônia foi vista pelos pesquisadores africanistas de visibilidade nacional, como terra de forte influência da religiosidade ameríndia. Sem desenvolver trabalho de campo na região, esses profissionais, davam notícias vagas sobre um tipo de culto denominado “batuque” ou “babassuê” que teria se curvado à tradição local; ou seja, à pajelança (Carneiro, 1964).

Eram incisivos em afirmar que esses cultos, em muito se diferenciam daqueles radicados no Maranhão, uma forte zona de influência daomeana. Para eles, em Belém, só existia uma pajelança negra que se formara a partir da migração de maranhenses em meio ao apogeu da extração da borracha (Bastide, 1985).

Apenas na década de cinqüenta, a antropologia volta seus olhos para os cultos de matriz africana na Amazônia, tentando efetivamente compreendê-lo, enquanto um sistema religioso independente. Os americanos Seth e Ruth Leacocks, desenvolveram trabalho etnográfico de fôlego pelos “batuques”1 de Belém, publicando um livro - até hoje sem tradução - denominado Spirits of the Deap (Leacock & Leacock, 1972).

Neste momento os etnógrafos da região amazônica, ainda não haviam voltado os olhos para este campo. Apenas na década de setenta, Napoleão Figueiredo e Anaíza Vergolino inauguram esta linha de pesquisa na Universidade Federal do Pará, então Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - passando a acompanhar mais de perto a matriz religiosa que existia no Pará – a Mina – então conhecida pela nomenclatura “Batuque”.

Diversos artigos foram publicados com abordagens variadas como, por exemplo o uso das plantas nos rituais afro-brasileiros (Figueiredo & Vergolino,
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1966). Em 1976, Vergolino defendeu sua dissertação de mestrado, intitulada “Tambor das Flores”, analisando a trajetória da Federação Espírita e Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Pará, anos depois revisitada (Luca, 2003).

Todos os estudos que se sucederam tiveram como principal eixo de pesquisa a religião Mina – ou Batuque como queriam os antigos - em suas diversas matizes. Depois da morte de Napoleão Figueiredo, Vergolino continuou publicando trabalhos em revistas especializadas discutindo; sincretismo nos ritos de semana santa (Vergolino, 1987); história da Mina no Pará (Vergolino & Luca, 1999; Vergolino,2000; Vergolino, 2003), o tempo dos rituais afro-brasileiros na Amazônia (Vergolino, 1994).

Nessa mesma linha de pesquisa adequou-se João Simões Cardoso Filho (Cardoso, 1999) que voltou seus olhos ao Festival de Iemanjá e Taissa Tavernard de Luca (Luca, 1999; Luca, 2007) que se interessou em estudar, primeiro a memória dos “mineiros” depois a organização de seu panteão.

Somente na década de oitenta os antropólogos, começam a atentar para um processo emergente que deveria ser melhor analisado; a inserção do Candomblé em terras paraenses. Neste sentido, partindo ainda das casas de Mina.2 Yoshiaki Furuya registra dois processos; o de umbandização e o de nagoização (Furuya, 1986). Este último mais referido no presente artigo.

Todavia este registro só se completa na virada do milênio, quando Marilu Campelo (2001; 2002), assume a linha de pesquisa voltada para a religiosidade afro-brasileira - fundada na década de 70 - suprindo uma lacuna deixada pela academia; os estudos da nova vertente religiosa, inserida no campo religiosos
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afro-paraense desde a década de 50 - até então não discutida pela literatura especializada – o candomblé em suas variadas vertentes.

Essa pesquisadora escreve vários artigos dentre os quais destacamos “Os Candomblés de Belém: O Povo-de-santo reconta a sua história” (Campelo, 2002) onde traça o percurso histórico da referida religião, mostrando nuances de seu estabelecimento em terras Amazônicas. Dedica-se a escrever a biografia do líder religioso Astianax Gomes Barreiros, ícone iorubano em Belém do Pará.

Neste sentido, como forma de retificar os grandes precursores da antropologia brasileira, este artigo pretende guiar o leitor, num passeio pelas nuances do campo religioso de matriz africana no Pará, dando conta das duas matrizes religiosas de maior visibilidade no cenário local - a Mina e o Candomblé.

Mina e Candomblé: as duas formas de ser africano no Pará.

Pensar em religião de matriz africana no estado do Pará é inegavelmente remeter a dois tipos de culto adentrados neste território em momentos históricos distintos; são eles a Mina e o Candomblé. O primeiro, precursor, chegou a Belém em meados do século XIX; enquanto o outro migrou, entre as décadas de cinqüenta e setenta do século XX.

De origem histórica mais antiga em terras paraenses, a Mina é uma religião trazida pelos escravos vindos do Daomé (República Popular do Benim) para os Estados do Maranhão e Pará. O termo Mina faz referência ao maior empório de escravos sob domínio português; o Forte São Jorge de Elmina, situado na Costa do Ouro, atual Gana, que exportava mão-de-obra negra para diversas partes do Brasil (Vergolino e Silva, 2003).

No Estado do Maranhão estes negros fundaram duas casas mater; a Casa das Minas – de tradição Jeje – e A Casa de Nagô – com influência da tradição nagô, em meados do século XIX. Além destes dois centros de culto, considerados
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pela bibliografia específica, como pioneiros; podemos citar também outros terreiros, de fundação um pouco mais tardia, que tiveram importância fundamental em se tratando da formação da Mina no Pará. Trata-se do Terreiro da Turquia, fundado por mãe Anastácia; e o Terreiro do Egito; criado por Massinocô-Alapong. Outro grande centro exportador de tradição é a cidade de Codó, situada no sudoeste do Estado do Maranhão, cuja ênfase era dada ao culto dos “encantados” (Vergolino e Silva, 2003).

Foi do Maranhão que os religiosos afro-brasileiros migraram para Belém, em duas etapas; a primeira composta pelos religiosos maranhenses migrantes da economia gomífera e a segunda constituída por paraenses que foram para o Maranhão buscar iniciação durante a década de 70 e 80 do século XX. Podemos dizer, no entanto, que a história paraense não é tão clara quanto à maranhense; nem as pedras da memória dos religiosos estão tão bem conservadas. A única certeza que se tem é que, “nas águas do Pará”, não existe um terreiro de raiz fundado por africanas. Se, em São Luís, podemos ter notícias das características étnicas das fundadoras, descrevendo inclusive as suas marcas tribais; em Belém, até bem pouco tempo atrás, os religiosos sequer faziam referência às linhagens. Atrevemo-nos mesmo a afirmar que essa tradição de reconhecimento da origem africana, em se tratando do grupo oriundo da primeira migração, fez o caminho inverso ao habitual, veio da academia para os terreiros.

Em 1999, quando nos colocamos em campo no intento de tentar traçar um elo entre os terreiros de Belém e o continente africano; escutamos apenas referência a uma seqüência de nomes historicamente equivalentes, que pareciam confusos aos olhos de quem queria adentrar nas brumas do tempo e encontrar um referencial comum, com cheiro do mofo. A tradição se apresentou apenas através de uma referência constante, embora não detalhada, a origem maranhense. São Luís era, sem sombra de dúvida, a Meca da Mina paraense (Luca, 1999).
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Dizer: “sou feito por maranhense” era pleitear para si, a legitimidade dada pelo critério antiguidade. Diziam-se tradicionais por estarem ligados aos “fundadores”, que eram os migrantes do estado vizinho, mas as respostas se calavam na medida em que aprofundávamos nossos questionamentos acerca da origem mais específica dessas pessoas. Era então impossível cruzar as fronteiras de forma mais precisa e definir modelos esquemáticos do tipo matriz-filial. Todos os terreiros estabelecidos em Belém, pareciam filiais acéfalas de uma tradição confirmadamente maranhense.

Encontramos em nossas andanças um terreiro centenário, fundado no Pará em 1890. Referimo-nos ao “Terreiro de Mina Dois Irmãos” – antigo – “Terreiro de Santa Bárbara” -, aberto pela maranhense Josina. Hoje este centro litúrgico encontra-se sob a guarda da terceira liderança. Depois da morte de Mãe Josina, o barracão fechou suas portas por alguns anos durante os quais realizavam-se apenas ladainhas para São Benedito, reverenciando assim o “vodum” da fundadora que era “Toy Verequete”.

Tempos depois, uma das “filhas-de-santo” de mãe Josina, conhecida como mãe Amelinha, retornou à casa e pediu à prima Benedita – irmã de mãe Josina – a autorização para realização de um toque, em homenagem a “Dom José Rei Floriano” seu “chefe de crôa”. A autorização foi dada de imediato, haja vista que, o próprio “Toy Verequete” – “vodum” Dono da Casa – teria aparecido à prima Benedita e ordenado que a mesma permitisse a reabertura do terreiro, caso uma das descendentes de mãe Josina, viesse requerer a realização de um “toque”. Desde então, o referido templo religioso não mais se fechou.

Depois da morte de Mãe Amelinha, a responsabilidade religiosa da casa, passou a sua “filha carnal” de nome Luíza, conhecida como Mãe Lulu. Prevendo a necessidade de sucessão, Mãe Amelinha incentivou a filha a “fazer o santo”.

Mãe Lulu apesar de ter sido iniciada no Candomblé ketu, pouco pratica esse ritual, dando continuidade à religião materna. Constatamos, depois de tantos anos
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freqüentando o Terreiro Dois Irmãos, que o mesmo segue uma linhagem sucessória familiar consangüínea. Os filhos e netos de Mãe Lulu ou são tocadores de “atabaques”, são “filhos-de-santo”, cuidam da cozinha, etc. Já presenciamos também a preocupação da religiosa em deixar sucessor.

Embora tenhamos relatado o caso de um terreiro de importância histórica considerável, não se tem certeza da origem precisa de mãe Josina, que certamente não era africana. Um pequeno histórico elaborado por seu Edílson Oliveira, marido falecido de mãe Lulu, trás apenas as informações genéricas (Oliveira, 1990). Um de nossos informantes se refere a ela como sendo codoense3, todavia esta é uma informação imprecisa.
Além desta referência a uma única casa centenária, a maioria dos “mineiros” paraenses nos contou uma história dividida em período (Luca, 1999), sendo assim temos:

1 - Período da pajelança; fase que remete aos pajés, referidos como de origem indígena.

2 – Período da chegada dos rituais de matriz africana. Esta migração teria acontecido no final do século XIX, em meio à economia gomífera. Muitos nordestinos vieram trabalhar nos seringais trazendo consigo, o referencial cultural.

3 – Período da invasão policial. Os informantes descrevem as repetidas invasões da polícia às casas de culto, a prisão de religiosos, a destruição de instrumentos litúrgicos. Todavia, se por um lado muitos terreiros sofreram com as investidas policiais, há diversas referencias ao poder das entidades que se vingavam dos perturbadores da ordem ritual.

4 – Período da calmaria. A referência ao início dessa fase é feita em dois momentos históricos distintos. Alguns dos informantes afirmem que o início desse período data da década de 30, com o governo de Magalhães Barata e outros
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citam a fundação da Federação Espírita e Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros do Pará (FEUCABEP) – em 1964.

Algumas perguntas permanecem depois desse passeio pelos meandros da memória dos religiosos: Porque toda a gênese da religiosidade afro-paraense é atribuída ao período da economia gomífera? O que aconteceu com os negros trazidos diretamente ao Pará em meados do século XVII e XVIII?

Não fomos os primeiros pesquisadores fazer tais questionamentos. Há muitos anos Anaíza Vergolino se dedica a vasculhar os arquivos documentais em busca da “pedra fundamental”; uma possível “Casa das Minas” do Pará. Foi também ela quem sugeriu a resposta a essas velhas perguntas ao argumentar que havia uma dispersão da população negra pelo vale amazônico (Vergolino e Silva, 2000).

E conclui dizendo: “Isto nos leva a pensar que a dispersão espacial da população negra no mundo rural tenha dificultado as trocas econômicas e simbólicas e, conseqüentemente, a tomada de consciência dos interesses coletivos (...)” (Vergolino e Silva, 2000:38).

Se até bem pouco tempo atrás os pesquisadores constataram total esquecimento da genealogia, atualmente os quadros são bem outros. No ano de 2003 a pesquisadora já referida acima, publicou um artigo intitulado “Os Cultos Afros do Pará” no livro Contando a História do Pará (2003), que veio a circular entre a comunidade religiosa local, mudando completamente o seu discurso.

Neste trabalho ela mostra que apesar dos poucos dados coletados pela narrativa oral, foi possível, depois de um processo de garimpagem documental e bibliográfico, construir duas genealogias. A primeira delas liga Manuel Teu Santo à Benedito Saraiva – Pai Bené - e a segunda estabelece um elo entre a africana
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Massinokô-Alapong, do Terreiro do Egito e Orlando Machado da Silva – Pai Bassu.

Pelas palavras da pesquisadora: “Manuel Teu Santo era um nigeriano de Noite (...) que morava em São Luís e era casado com dona Filoca, uma dançante da Casa de Nagô que recebia Badé (...). Foi no terreiro desse babalorixá que mãe Anastácia “caiu”, dançou pela primeira vez e se iniciou no santo para depois fundar o Terreiro Fé em Deus ou Terreiro da Turquia” (Santos, 1986 e Ferreira, 2000 apud Vergolino e Silva, 2003:18).

Essa religiosa esteve muitas vezes em Belém, visitou diversos terreiros,e iniciou um “filho-de-santo” chamado Manuel Colaço Veras, que viveu em Belém durante os anos 60 e 70 e fundou o Terreiro de Nagô Fé em Deus, situado na antiga travessa Itororó – Atual Enéas Pinheiro – no famoso bairro da Pedreira4, onde hoje é a sede da FEUCABEP5 (Vergolino e Silva, 2003). A terceira geração descendente do nigeriano é formada já pelo paraense, natural de Curuçá – Benedito Saraiva Monteiro – segundo consta, o único “filho-de-santo” iniciado por Manuel Colaço – que fundou o Terreiro de Nagô de Santa Bárbara e hoje possui mais de uma dezena de descendentes.

A outra genealogia foi iniciada pela africana Massinokô-Alapong, fundadora do Terreiro do Egito, que iniciou Margarida Mota e esta, por sua vez, Orlando Machado, o Bassu.

Esta descoberta, foi divulgada em meio a um outro episódio histórico de fundamental importância, o aniversário de 50 anos de” feitura” de Pai Bené. Durante esta ocasião, Anaíza Vergolino o presenteou com um Banner de meia parede onde estava inscrita toda a linha de ancestralidade que o ligava ao
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continente africano. O presente foi dado em meio a um ritual público, realizado no próprio Terreiro de Nagô de Santa Bárbara com discurso proferido, no qual a “Dotora”6 apresentou o resultado de suas pesquisas informando a comunidade afro-paraense que a linhagem de pai Bené, embora não referida, é real. Também neste dia foi inaugurada uma placa de bronze, anexada na parte lateral do terreiro que contém os seguintes dizeres: “Jubileu de Ouro: 1954 – 2004 – Benedito Saraiva Monteiro – babalorixá – Terreiro de Nagô de Santa Bárbara 50 anos de dedicação, amor e caridade aos filhos-de-santo, abiãs, familiares, admiradores. Belém do Pará 13 de junho de 2004”.

Cabe ressaltar que depois do discurso proferido por Vergolino seguiu-se uma seqüência de homenagens feitas a pai Bené, respectivamente, pelos descendentes consangüíneos, pelos seus “filhos-de-santo” - inclusos na quinta geração a contar de Manuel Teu Santo - e principalmente por grandes personalidades do universo afro-paraense. Dentre eles destacamos; pai Walmir da Luz Fernandez – “candomblecista” e então presidente do INTECAB – Seção Pará; pai Serginho de Oxossi – “mineiro” da segunda migração e radialista da Rádio Clube; mãe Lulu – mineira descendente da primeira migração e dona do único terreiro centenário do Pará; pai Augusto – “candomblecista” iniciado por Astianax Gomes Barreiro, primeiro “candomblecista” do Pará; pai Tayandô – hoje uma das lideranças religiosas politicamente mais engajadas, e descendente de Orlando Bassu; e mãe Emília – “mineira” que estava representando a FEUCABEP, órgão fundado por Manuel Colaço como burocracia e “terreiro” ao mesmo tempo, cujos espaços sagrados eram zelados por pai Bené. Além destas pessoas também fez uso da palavra Nilma Bentes, representando do Centro de Defesa do Negro no Pará (CEDENPA).
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Para quem lia o evento nas entrelinhas, simbolicamente estava dito que os diversos grupos reconheciam a tradição de pai Bené. Ali encontramos tanto grupos completamente aliados como a FEUCABEP – do qual Bené era um dos representantes máximos – e sua família ritual, quantos outros grupos como, por exemplo, os “candomblecistas”, - que historicamente travaram com os “mineiros”, uma disputa surda por legitimidade.

Certamente essa dupla descoberta feita por Anaíza Vergolino veio revolucionar o campo afro-brasileiro local; primeiro por instituir um sistema de contagem sucessória que não era peculiar aos mineiros descendentes da primeira migração, depois por fazer calar um dos fortes argumentos lançados aos “mineiros” no eterno jogo por poder religioso que era a falta de ancestralidade africana e finalmente, por incluir na lista dos tradicionais aquele que, até então era reconhecido pela comunidade religiosa local como de inovador - Orlando Bassu; certas vezes descriminado por seu jeito irreverente, pelas vestimentas ecléticas que ora refletem um ethos “candomblecista” - através dos “paramentos” de “orixás” – ora remetem aos centros de “Umbanda” – com seus “caboclos” que, por vezes usam “penas” – ora simplesmente inovam os adereços – somando à vestimenta do “encantado” um sombreiro mexicano ou introduzindo o francês crioulo no repertório performático de “Exu”. Este religioso “de extrema esquerda” passou, então, a compor, com pai Bené a lista daqueles que conseguiram romper as fronteiras do Atlântico.

Tudo isso certamente enveredaria os rumos deste artigo para uma vasta discussão sobre a invenção da tradição (Hobsbawm & Ranger, 1984), o que não é nosso objetivo. Também poderíamos divagar longamente sobre a intersubjetividade do trabalho científico, idéia devidamente registrada por Clifford Geertz na década de 70 (Geertz, 1989) quando contestava a visão de laboratório etnográfico malinowskiana (Malinowski, 1974).
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Certamente o trabalho etnográfico é um eterno processo de ir e vir, uma influência recíproca entre pesquisador e pesquisado. O exemplo supracitado mostra como os resultados obtidos pelo pesquisador, de alguma forma retornam à comunidade e a influenciam, principalmente quando se trata de um trabalho de antropologia urbana. As pessoas às quais nos referimos fazem uso das informações produzidas na academia, ora rejeitando-as – o que não é o caso – ora incorporando-as e se redefinindo a partir das mesmas.

Foi justamente o que aconteceu com os religiosos descendentes da primeira migração de mineiros, eles absorveram o discurso acadêmico, a informação adquirida pelo pesquisador através de outros caminhos, que não o da narrativa oral. Ao visitarmos o “Terreiro de Nagô de Santa Bárbara” recebemos das mãos de um dos “filhos” de pai Bené; o advogado Dr. Victor Saldanha, um desdobramento das pesquisas de Anaíza Vergolino que contem a listagem de todos os filhos e netos de Benedito Saraiva, bem como os nomes dos terreiros abertos pelos mesmos.

Se até aqui seguimos os rastros deixados pela literatura antropológica acerca da Mina no Pará, é necessário olhar para um outro grupo de mineiros que até então esteve ausente desta bibliografia; os mineiros da segunda migração, que fizeram o percurso inverso. Os primeiros migrantes vieram do Maranhão, se estabeleceram no Pará para aqui iniciar seus descendentes e os segundo grupo é formado por um conjunto de paraenses que saíram de Belém “para beber em águas maranhenses”. Em função deste movimento, talvez o termo escolhido não esteja adequado, afinal, não ouve vinda e sim ida. Insistimos em usá-lo considerando que bem mais que migração de pessoas, referimo-nos à migração de costumes, o que inegavelmente aconteceu.

O contexto histórico no qual isso ocorreu era bem outro. Tratava-se da década de setenta e oitenta, a Mina dos antigos já estava estabelecida e havia sofrido algumas modificações, acontecidas por diversos motivos.
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Se, conforme já foi dito, até bem pouco tempo atrás, os descendentes dos primeiros “mineiros” pouco sabiam sobre o terreiro de origem de antecessores, não foi difícil constatar que o contato com o Maranhão não foi mantido, embora o discurso legitimador ainda se referisse a esse Estado.

A Mina também, já não era a única religião de matriz africana do Pará. Na década de trinta havíamos assistido a entrada da Umbanda, trazida por um “cruzamento de linha” realizado por mãe Maria Aguiar. Durante as décadas de 50 e 70, a sociedade paraense foi apresentada a uma nova forma de adorar os deuses africanos. Estabeleceu-se o primeiro contato do Candomblé com o Pará. Numa livre inspiração no sociólogo francês Pierre Bourdieu (1974) podemos afirmar que: em Belém já havia um campo religioso estabelecido, e por isso era necessário angariar capital simbólico para conseguir espaço neste campo tão eclético.

Sendo assim, vários novos sacerdotes, restabeleceram o vínculo com a antiga Meca, procurando os terreiros dos dois religiosos mais conhecidos de uma geração de mineiros maranhense mais recente7; Pai Euclides Menezes Ferreira - do Terreiro Tenda de São Jorge Jardim de Oeira, nação Fanti-Ashanti; e Pai Jorge de Itacy de Oliveira – do Ilê Axé de Iemanjá – ambos descendentes de Massinokô-Alapong, iniciados por Maria Pia. Incluindo-se, portanto na descendência dos Terreiros do Egito.8

Pai Euclides iniciou entre outras pessoas, Joãozinho de Mariana (falecido) e Alfredo9, este último filho de criação do religioso maranhense e herdeiro de sua
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vocação de pesquisador nativo. Pai Jorge de Itacy, por sua vez, incorporou em sua linhagem, pai Aluísio Brasil, pai Serginho de Oxossi, mãe Solange, mãe Rosângela, mãe Ercília, mãe Tânia e pai Francelino de Xapanã – este último, já falecido, se estabeleceu em São Paulo onde morou com Crioulo, um religioso, muito famoso no Pará que teria “borizado” pai Bené, antes do mesmo ser iniciado por Manuel Colaço.
É preciso dizer que, uma vez iniciados, esses religiosos nunca mais perderam o contato com a casa de origem, estabelecendo um vínculo completamente diferente do da primeira geração. A maior parte dessas pessoas viaja constantemente para o Maranhão em momentos litúrgicos importantes como cerimônias fúnebres, sacrifícios ou grandes festas públicas. O contato se dá também, pela vinda freqüente da “família-de-santo” maranhense ao Pará, auxiliar em “feituras”, acompanhar “obrigações” ou simplesmente passear.

Essas constantes visitas dos maranhenses possibilitaram o contato entre os mesmos e os descendentes da primeira migração, permitindo assim troca de conhecimento, repasse de legitimidade e até reconhecimento. Tivemos oportunidade de presenciar uma homenagem feita por pai Fernando de Ogum – “filho-de-santo” de pai Bené – à Pai Euclides que estava em Belém em visita a Alfredo. Na ocasião houve a entrega de uma placa, discurso proferido por Pai Fernando reconhecendo a importância religiosa do maranhense e divulgando a felicidade em tê-lo em seu “terreiro”. Lemos essa homenagem como uma homenagem da Mina do Pará à Mina do Maranhão.

Citamos ainda, como diferença entre esses religiosos e os referidos anteriormente, a referência constante a uma linhagem. Genealogia que percorre, não só uma linha vertical ascendente, mas tem um raio de alcance muito maior. Através da narrativa dos informantes da segunda migração, podemos estabelecer rede de relações, colecionar nomes dos “antigos” maranhenses, sempre descritos como sigilosos e austeros.
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Até aqui trabalhamos a partir da existência de dois grupos - os descendentes da primeira migração de “mineiros” e os membros da segunda migração, o que pode ter passado ao leitor a idéia de que se trata de dois grupos homogêneos entre si, ledo engano. Se considerarmos particularmente o ritual praticado pelos diversos religiosos de cada bloco, veremos que muitas são as variações.

Primeiramente não existe um “xirê”10 comum, e isso vale para mineiros dos dois grupos. A seqüência de doutrinas varia de casa para casa. As variações continuam no que se refere à ênfase dada a cada entidade cultuada; os instrumentos musicais; os paramentos das entidades e principalmente, ao ritual iniciático.

Se existe um elemento comum a todas as casas, podemos dizer que é a presença das mesmas categorias de entidades em todas as casas. O panteão cultuado é construído a partir de um imaginário comum perpassado por um elemento chave que é a mestiçagem.

Para falar do conjunto de entidades que compões o panteão da Mina no Pará, recuperamos Anaíza Vergolino quando diz que em se tratando da Mina no Pará; “tanto se cultua os orixás nagôs (...) quanto aos voduns jêjes que podem corresponder aos orixás nagôs (...). De todos os orixás, Iansã é sem dúvida o mais popular (...). Em Belém é amplamente conhecida como Babassueira, Maria Bárbara Soeira ou simplesmente Maria Bárbara.” (Vergolino e Silva, 2003:22).

Tanto os “orixás” quanto os “voduns” representam as forças da natureza. São eles as entidades máximas no que tange a hierarquia do panteão. Além deles citamos os “nobres gentis nagôs” ou “senhores de toalha” que são os donos do poder, representados pela nobreza européia, principalmente de países cristãos. Esses personagens, de alguma forma possuem relação com o processo de expansão marítima e com a colonização do Brasil. Personagens hierarquicamente
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importantes, muitas vezes referidos como “os brancos”, que tematizam, cada um ao seu modo, valores como o cristianismo, lusitanismo, hierarquia, nobreza etc.

Entre esses destacamos Rei Sebastião, D. José, D. Manuel, D. Luís, D. João, Marquês de Pombal e outros; pessoas reais que cruzaram os limites da vida e passaram a ser adorados.

Também não podemos deixar de citar os “cabocos”11 que “são encantados, não são espíritos de índios mortos” (Vergolino e Silva, 2003:22), nem tampouco são todos índios. Na verdade os “cabocos” representam o filão mestiço do panteão mineiro. Trata-se do não branco, como os “juremeiros” (índios), “mouro”12, “codoense”, “bandeirante” etc... Organizam-se em famílias que também podem possuir nobres, geralmente “não tão nobres” quanto os “senhores de toalha”, ou sem as mesmas insígnias rituais demarcadora de nobreza.

Agregam-se a esse panteão também os “surrupiras” descrito por Vergolino (2003) como “encantados locais, tendo sua encantaria ou morada na localidade de Arapixi, município de Chaves, Ilha do Marajó”. As narrativas sobre essas entidades são imprecisas. Uns os descrevem como índios não “civilizados”, outros como entidades pouco humanas, muito peludas. O fato é que todos concordam com os hábitos selvagens que os “surrupiras” têm, de se embrenhar no meio do mato, se abraçar com as árvores de Tucumã, ou até dormir em cama de espinhos.

Algumas casas também absorveram a imagem de “exu” advinda da Umbanda. Um corpo de entidades que representam o povo da rua e formados por prostitutas, ladrões, ciganas, malandros que são devidamente representados.13
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Se, em linhas gerais, existe um imaginário comum que condensa as mesmas categorias de “entidades”, as semelhanças param por aí. A forma como os religiosos as descrevem, classificam sua hierarquia e as distribuem dentro das famílias varia. Varia também a ênfase dada a cada categoria durante o culto.

Existem casas que em seus toques, enfatizam mais os “voduns”, aquelas que cantam para “vodum” e “orixás” com acento neste último, as que cantam em língua africana, completamente para “orixá”. Nos “terreiros” oriundos da segunda migração é dada maior importância à figura do “vodum”. Vale ressaltar que o “caboco” se faz presente em todas as casas independente da migração.
Quanto à nomenclatura destas entidades, os mineiros de segunda migração não utilizam a denominação “senhores de toalha”, substituindo-a por “nobres gentis nagôs”.

Quanto à posição hierárquica dessas entidades vale dizer que quase todos os descendentes da primeira diáspora os classificam como equivalentes aos “orixás”. Se perguntarmos a que categoria pertencem. uns respondem que são “voduns”; outros, que são “orixás”. Sendo assim, podemos dizer que para esse grupo existe uma cúpula formada por “orixás”, “voduns” e “senhores de toalha”. Algumas vezes essas classificações são usadas como sinônimas, acrescendo-se a elas um outro adjetivo; “os brancos”. Abaixo dessas entidades encontramos, os “caboco”.

Os membros da segunda migração, no entanto, não só diferenciam “orixás” de “voduns” e de “nobres gentis nagôs”, como estabelecem hierarquia entre eles. Sendo assim temos em primeiro plano os “voduns” e os “orixás”, de origem negra -
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Quanto aos instrumentos musicais, entre os membros do primeiro grupo existem casas que possuem três tambores verticais sustentados por cavaletes (rum, rumpi, e lê) acompanhados pelo agogô, cheque e cabaça. Existem os que, além dos três tambores possuem “abatas” (tambores horizontais de duas bocas), tocados raramente. Há ainda aqueles que tocam também os “abatas”, os que usam a sineta na mão do religioso para introduzir a doutrina e aqueles que a substituiu pelo “adjá”.
Os membros do segundo grupo tocam geralmente os “abatas” acompanhados da cabaça e do agogô. Em alguns deles vê-se ainda um outro tipo de tambor vertical, encaixado no meio da perna do músico, que se denomina de “tambor da mata”.

Quanto ao paramento; existem os terreiros em que os “voduns” e “orixás” “não são paramentados” e sim vestidos com richelieu e coberto com “alá”14; os que paramentam os “orixás” com as indumentárias específicas do Candomblé e os que podem ou não “paramentar” essas entidades, de acordo com a preferência do filho que a veste. É possível constatar em alguns, o uso de tecidos brilhosos acrescendo-se o “filá”.15

Há ainda os que, cotidianamente não se apresentam como religiosos, os que se vestem com roupas laicas carregando fios de conta ou outros símbolos rituais e os que costumam ir a eventos usando longas túnicas - denominadas abadas.

Quanto aos diferentes processos iniciáticos existem os que incorporaram, com algumas alterações, o modelo de “feitura” do Candomblé, recolhendo o filho por 21 dias, raspando-lhe a cabeça, abrindo-lhes incisões, despejando o sangue
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do sacrifício diretamente em cima do “ori”16 do “iaô”, utilizando animais de quatro patas. Outros, no entanto realizam apenas o “tabocã de ori”, pequenas retiradas do cabelo do médium e cortes rituais feitos em lugares específicos como centro da cabeça, recolhem por tempo reduzido, não sacrificam animais de quadrúpedes e misturam o sangue dos bípedes ao “remédio” feito com as ervas específicas da entidade que vai ser colocado no “ori” do iniciante.

É nítido, ao lermos a descrição acima exposta, que alguns “mineiros” acabaram por incorporar algumas das práticas do Candomblé baiano o que interferiu nos rituais e nos simbolismos da “feitura”, da apresentação pública das entidades durante as festas, por vezes das danças no salão e na produção de sua cultura material - uma estatuária obedecendo a um padrão estético artístico mais africanizado - incorporando elementos até então estranhos a este contexto.

Sendo assim, não podemos descrever o percurso histórico nem as readaptações litúrgicas da Mina sem referirmos à outra matriz religiosa que tanto a influenciou. O Candomblé foi introduzido em Belém por intermédio de dois movimentos: o primeiro por iniciativa pessoal de alguns paraenses (já iniciados ou na Umbanda ou na Mina) que foram à Salvador “fazer o santoe, o segundo, foi a importação de ”pais e mães-de-santo” que vieram para região iniciar “filhos” e acabaram instalando-se na cidade, passando a fazer parte da memória africana na região.

Os “candomblecistas” são ex-“umbandistas” ou ex-“mineiros” que se converteram e foram buscar a “feitura” na Bahia. Suas narrativas remetem a outras tradições e terreiros fora do Pará, como por exemplo: Beiru, Bate-Folhas, Gantois, ou por pessoas específicas tais Manuel Rufino de Souza, Samba Diamongo, etc., tendo suas falas permeadas por nomes de pessoas desconhecidos até então na história das religiões afro-paraenses. São eles: Cícero
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Fernandes, Mundinha (Dewi), Maria das Dores (Deremin), Lídio Mascarenhas e Jiorlando de Oliveira.

O exame dessa memória remete-nos à história de uma descendência e a uma rede de relações familiares que estruturam a socialização dentro do universo religioso. Para isso, lançam mão da filiação religiosa, de uma “família-de-santo”, construída a partir de um “pai ou mãe-de-santo” importante na Bahia. A título de exemplo citamos, a história de pai Astianax iniciado por Manuel Rufino de Souza, que é reverenciado por mãe Nanjetu, “angoleira”, como sendo seu “avô-de-santo”. Ou, o caso de pai Haroldo, pai Guilherme e pai Hyder, “irmãos” e “primos-de-santo”, iniciados por mãe Deremin e mãe Dewi, por sua vez “irmãs-de-santo” baianas; que vieram instalar-se na capital paraense, formando uma base de referência para alguns sacerdotes e sacerdotisas.

A história do Candomblé em Belém é, em parte, a história de vida desses sacerdotes. Esse grupo é formado por pessoas que possuem uma memória seletiva e qualitativa. A história do culto é contada com a preocupação em afirmar a legitimidade “candomblecista” dos seus dois modelos: ketu e angola, e de seus sacerdotes. Prosseguem incorporando um vasto relato sobre suas próprias vidas e emitindo opiniões sobre aqueles que consideram importantes. A feitura é extremamente valorizada mesmo que a pessoa já fosse um sacerdote reconhecido e com grande clientela em Belém.

Falar da história de Candomblé paraense é falar em primeiro lugar da história de vida de Pai Astianax e dos dois grupos que aqui se instalaram nas décadas seguintes: ketu e angola.

Reconhecido como o primeiro paraense iniciado nesta modalidade de culto, Astianax Gomes Barreiro, vulgo Prego, viajou em 1952 para Salvador. Lá conheceu Manuel Rufino de Souza, no antigo bairro do Beiru, hoje Tancredo Neves e foi iniciado para o orixá Oxumarê. Vivendo 10 anos entre Salvador e Rio de Janeiro e só retornou à Belém em 1968, começando sua jornada na tentativa
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de implantar o novo culto. Não logrou êxito, mas ganhou um lugar de destaque na memória religiosa de todo “candomblecista” paraense tornando-se uma referência obrigatória à história desse movimento religioso.

Há um respeito velado a seu papel nessa história, pois mesmo criticado pelos “cadomblecistas” por não ter tido pulso forte para implantar o Candomblé em Belém, é o ponto de partida para qualquer genealogia que tente recuperar a memória dos pais e mães-de-santo belemenses, principalmente em se tratando de uma liderança “angoleira”. Sua morte em 2003 fechou um ciclo de retorno às raízes e de definição do Candomblé no campo paraense.

Pai Astianax é o ícone fundador do Candomblé em Belém por ser o primeiro iniciado em Salvador e por ter mantido os seus laços com a Mina. Dizem mesmo que suas entidades “mineiras” não aceitaram a troca de ritual, decorrendo daí uma série de versões sobre a sua atuação nos terreiros. Seria ele, o responsável pelo desencadeamento do processo de candoblecização dos terreiros “mineiros”?

Outros nomes são incorporados nas narrativas sobre o estabelecimento do Candomblé na capital paraense: pai Manuel das Jóias, mãe Olindina, mãe Cléia de Iansã, pai Roberto do Satélite, mãe Ida Carmem, mãe Éster de Iansã, mãe Mercedes de Xangô, pai Haroldo de Obaluaiê, (falecido), pai Hyder de Oxanguiã, pai Guilherme de Oxossi, pai João Guapindaia, mãe Elisa de Iemanjá (Ia Narê), mãe Nazaré, pai Walmir de Oxossi, mãe Nanjetu17, mãe Ivete de Xangô, mãe Consolação (Ia Jacolossi e que hoje representa o grupo “jeje” na capital paraense), pai Edson Catendê (o “baiano”, que é associado ao Movimento Negro).18
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No seu conjunto, essas pessoas construíram um discurso, que tem como marco divisor do campo religioso paraense de um lado: “ser feito”, ou seja, iniciado em Salvador ou pelos menos por um sacerdote baiano que tenha vindo para Belém com esta finalidade. E de outro, a construção dos dois grupos ketu e o angola, que procuram manter variações internas que marcam a construção de suas identidades.

A primeira condição para se abrir uma casa de Candomblé é, além de ter completado as “obrigações” necessárias, receber o “axé de yalorixá” ou “babalorixá” dado por seu pai ou mãe-de-santo (que obrigatoriamente os inscrevia numa rede de genealogias e os diferenciava dos primeiros “mineiros”) e também o receber “axé da casa”, que deverá, a partir de então ser cultuado por todos os membros da nova comunidade.

Há um panteão básico, porém, a seqüência do “xirê” varia de grupo para grupo. O elo comum pode ser percebido nos paramentos rituais dos “Orixás” ou “Inikisses” ou dos “caboclos”, que permite que o observador ou um visitante identifique tudo como Candomblé. O elo diferenciador pode ser percebido no processo iniciático e na presença de uma entidade particular: a “Bombogira”, uma espécie de “exu” feminino.19

O ritual “ketu” enfatiza um conjunto de tradições oriundas dos povos iorubás, que acabou por predominar sobre as demais tradições (“angola”, “congo”, “jeje” e “ijexa”). Estas tradições mantêm a ênfase no panteão básico de 16 Orixás, alguns com outros nomes ou “qualidades” além do nome principal; na musica ritual cantada em ioruba arcaico, no toque dos atabaques com baquetas (chamadas de aguidavi); na expressão corporal e processos específicos na liturgia de iniciação
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 (a raspagem total dos cabelos, as marcas tribais chamadas de “curas” e o processo de confecção dos “assentamentos” dos “Orixás”).

Já o “angola” é um ritual de maior influência das populações negras trazidas dos portos de Angola e Guiné. Há certas diferenças no ritual iniciático, na língua que mistura o português com fragmentos das línguas quimbundo e quikongo, na nomenclatura dos deuses e das pessoas que praticam o culto, como por exemplo, “pai” ou “mãe-de-santo” são denominados respectivamente tata de inkisse ou mametu (no caso feminino). As danças também procuram manter uma especificidade no que diz respeito a expressão corporal e os atabaques são tocados com as mãos. Mas, de um modo geral, houve grande assimilação das tradições ketu, tendo adotado os Orixás, com suas particularidades, símbolos e roupas.

A expansão do Candomblé é constatada então pela visibilidade de seus terreiros, pela formação de uma cúpula e pela inserção numa rede social onde são possíveis as trocas e as mediações dentro do campo religioso paraense.

O Candomblé em Belém não teve uma entrada harmoniosa na cidade, pelo contrário, a busca por esta modalidade é uma estratégia trazida na busca pela legitimação. Alguns iniciados optaram por tentar manter um culto mais africanizado, seguindo o modelo baiano pureza; outros tentaram manter os dois cultos, retomando suas atividades religiosas cotidianas como “mineiros” e festejando apenas o seu orixá. Esses só pagam obrigação nem festejam “orixá” anualmente. Os “mineiros” que se misturaram passaram a ser criticados pelos “candomblecistas” na medida em que “misturam” os dois rituais criando o que chamam pejorativamente de “minomblé”.
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Conclusão

À guisa de conclusão, observamos que as disputas entre esses grupos são muito fortes, porém não constituem barreiras intransponíveis, nem demarcam conflitos permanentes. E, particularmente, no caso de Belém elas tendem a ser problemas externos no que diz respeito à campanha que algumas igrejas neopentecostais lhes dispensam. Neste momento, os “mineiros”, os “candomblecistas” e as instituições religiosas que os representam, como por exemplo, a Federação e INTECAB – Seção Pará se juntam quando se trata de defender a liberdade religiosa.

Um grupo de “pais-de-santo” conseguiu se unir à prefeitura de Belém e se formaram um GT (Grupo de Trabalho) para discutir ações municipais que visem a proteção do culto. Lutam para terem livre acesso aos cemitérios e ao atendimento religioso aos seus adeptos e filhos que por ventura estejam hospitalizados.

Assim, conseguiram algumas vitórias importantes: a) a primeira foi a conquista de um espaço na organização política da prefeitura com a elaboração do I Congresso Municipal de Afro-Religiosidade que está caminhado para sua quarta edição; a segunda, no ano de 2003, foi a criação do Dia Municipal da Umbanda e dos Cultos Afro-religiosos do Pará, no Dia 18 de março; e a terceira, a criação do Dia Estadual, neste ano de 2004 na mesma data. Também juntar os principais representantes dos dois grupos de “mineiros” e os com “candomblecistas” para uma cerimônia especial: a entrega da Comenda Mãe Doca para os mais antigos terreiros em funcionamento em Belém (2003).

Nesta noite de gala, em um espaço cedido pela Prefeitura de Belém, representantes da Federação, do INTECAB – Seção Pará, do CEDENPA, do Conselho Municipal do Negro, da Universidade Federal do Pará e outras pessoas foram testemunhas de um encontro sui generis: um “toque” para todas as
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modalidades de culto afro-religioso em Belém: “Mina de vodun, jeje, nagô”, candomblé “ketu e angola”, Umbanda, Cura e Pajelança.
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Notas

1 Por muito tempo a religião, hoje conhecida como Mina, era chamada de Batuque e assim foi registrada por diversos pesquisadores (Leacock, 1972; Figueiredo & Vergolino, 1966).

2 Yoshiaki Furuya quando registra os cultos de matiz africana no Pará, durante a década de 80, já percebe a mudança na nomenclatura. Os batuques de Belém passam a ser, mais frequentemente, denominados de terreiros de Mina. Provavelmente isso aconteceu em função da inserção de novos tipos de culto em terras paraenses; como, por exemplo, o candomblé.  

3 O termo codoense possui dois significados: neste contexto significa a pessoa originária do Município maranhense de Codó; mas também designa uma família de encantado.

4 O bairro da Pedreira é conhecido pela titulação “bairro do samba e do amor”, vale dizer que em seu território foi grande a concentração de terreiros.

5 Sigla que significa Federação Espírita e Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros do estado do Pará.

6 Os religiosos afro-paraenses chamam Anaíza Vergolino de “Dotora”.

7 Provavelmente os mineiros de segunda diáspora não procuraram a Casa das Minas nem a Casa de Nagô por que essas casas a muitos anos não iniciam ninguém.

8 É importante que se diga que o Terreiro da Turquia, encontra-se atualmente sobre a responsabilidade de pai Euclides.

9 Existem outros religiosos iniciados por pai Euclides como pai Alberto e Pai Lauro, mas em outra “nação” e não na mina. Em 1976, pai Euclides foi para Recife onde se submeteu a nova feitura na “nação” Nagô-Egbá e Jeje-Mahi em 1976, no Recife, pelas mãos da Ialorixá Maria das Dores da Silva (Ferreira, 2004).

10 Dá-se o nome de “xirê” à seqüência de doutrinas cantadas em homenagens às entidades em um ritual.

11 Corruptela da palavra caboclo.

12 Há quem descreva os mouros como brancos, no entanto são os brancos não católicos.

13 Vale ressaltar que este campo religioso afro-paraense possui essa outra matriz religiosa; a “Umbanda”. Seu culto, também foi importado do Rio de Janeiro na década de 30, por Mãe Maria Aguiar (também “mineira”). A “Umbanda” é uma religião de muitas matizes uma vez que ora se aproxima do modelo carioca – embora os religiosos não realizem viagens em busca de  “atualização” da tradição, nem possuam tal discurso – ora se aproxima da “Linha de Cura” – também conhecida como “Linha de Pena e Maracá” - ora se fundamenta no espiritismo kardecista – com as famosas seções de mesa branca - ou se espelham nos rituais de “Mina”, o que é bem mais freqüente.

14 Toalha branca estendida sobre a cabeça das entidades de alto status.

15 Adorno de cabeça com conjunto de contas enfiadas que pendem sobre o rosto.  

16 Chama-se de ori, ao centro da cabeça do médium.  

17 Pai Walmir e Mãe Nanjetu são os responsáveis pela introdução do Instituto de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (INTECAB - Seção Pará, que atualmente congrega “mineiros” e “candomblecistas”.

18 Edson Catendê é o organizador de uma entidade de caráter religioso e cultural – a Associação dos Filhos e Amigos do Ilê Axé que promove a conscientização da cultura negra em Belém

19 No Candomblé exu é considerado o primeiro orixá do panteão ketu e ao mesmo tempo um princípio individualizador, sendo pois tratado como um deus e não como um espírito tal como na Mina e na Umbanda.  

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* Artigo originalmente publicado na Revista Aulas, da Unicamp, Dossiê Religião, N. 4, abril - julho 2007. Organização: Karina K. Bellotti e Mairon Escorsi Valério. Disponível em: http://www.unicamp.br/~aulas/Conjunto%20II/4_13.pdf. Acesso em: 29 mai 2011.

** Doutora em Ciências Sociais – Antropologia (UFPA), professora adjunta de Antropologia na Universidade do Estado do Pará e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião - Mestrado da mesma instituição.

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